Idade máxima para se hospedar: a barreira do etarismo nos hostels

Idade máxima para se hospedar: a barreira do etarismo nos hostels

Albergues pelo mundo vivem um embate e, alguns, colocam limite de 35 anos para seus hóspedes. O motivo seria a intolerância ao barulho e as reclamações dos mais “velhos”

Quando os hostels surgiram, em 1909, na Alemanha, eram voltados para jovens com pouquíssimo dinheiro e grupos escolares em excursão.

Essa visão mudou em grande medida. Hoje, não é raro encontrar idosos que viajam durante meses ou tiram um ano sabático. Nessas situações, não há orçamento que sustente uma estadia prolongada num hotel tradicional, com diárias que custam pelo menos o dobro do que num dormitório compartilhado.

Isso acontece em paralelo com o aumento dos cidadãos com 60 anos ou mais, que, de acordo com a Divisão de População da ONU, cresce mais rapidamente que qualquer outro grupo etário e soma, em 2022, 13,9% da população mundial.

Um retrato do acolhimento é a mudança do nome da maior e mais antiga rede de hostels, a Hostelling International. Até os anos 1990, a associação se chamava International Youth Hostel Federation, Federação Internacional de Albergues da Juventude.

“Mudamos nosso nome especificamente para garantir que todas as idades se sintam bem-vindas nos hostels”, explica Danielle Brumfitt Norris, vice-presidente da dependência dos Estados Unidos.

Os estabelecimentos deveriam proporcionar uma experiência para todos os públicos, “independentemente de raça, idade, etnia, habilidade, sexo, religião, orientação sexual e nacionalidade”.

Entretanto, não existe qualquer mecanismo que garanta a admissão universal. E é nessa brecha de autonomia que moram as restrições.

Um extenso levantamento feito pelo site The Hostel Helper apontou em 2020 que 80% dos albergues não possuíam limitações de idade. Mas o restante opta por manter uma atmosfera específica, principalmente quando existe um bar bastante ativo nas instalações e as festas são frequentes, caracterizando-os como “party hostels”.

O limite normalmente é estabelecido para os clientes de até 35, 40, 45 ou 65 anos e há pelo menos um exemplo disso sendo aplicado em cada um dos cinco continentes, seja no México, Nova Zelândia, Canadá, Guatemala, Suécia, Israel, República Tcheca, Marrocos, Tailândia, Itália, África do Sul, Índia, para citar alguns países.

Porém, isso é mais frequente na Austrália e na Europa, que concentra 30% de todos os albergues do mundo, segundo os dados de 2020 do Hostelworld Customer Survey Data.

Já na Alemanha, não é raro encontrar acomodações com uma barreira de 35 anos, para preservar, de certa forma, a tradição.

Contrapontos dos limites de idade

O gerente do Hans Brinker Hostel Amsterdam, na Holanda, Sage Scott, justifica que a maioria das reclamações que recebem vem de pessoas mais velhas que se incomodam com o barulho causado pelas celebrações ou por outros hóspedes.

“Eles querem ficar trocando o tempo todo de quarto e, às vezes, são agressivos com os funcionários”, conta. E acrescenta: “O Hans Brinker está em funcionamento há 52 anos e é considerado um albergue da juventude para jovens viajantes. Nossas políticas foram elaboradas de acordo com diversos anos de vivências”.

Para confirmar uma reserva feita no site do local, o interessado tem de aceitar que leu os termos e condições, onde está listado (de maneira um pouco escondida), que maiores de 35 anos não são permitidos nos dormitórios compartilhados.

Caso um desavisado apareça por lá, Sage diz que o protocolo é oferecer uma troca para um quarto privativo, se houver disponibilidade, ou reembolsar a estadia e ajudar na busca por um estabelecimento compatível.

Por outro lado, o Jolly Swagman Backpackers Sydney Hostel, na Austrália, decidiu seguir na contramão e se posiciona deixando bem claro que as restrições “acabam com a diversidade dos visitantes”.

“Queremos que nosso hostel não só tenha uma grande variedade de nacionalidades, mas também de idades. Às vezes, os mochileiros mais velhos são as melhores pessoas para conversar sobre recomendações, porque eles têm mais conhecimentos de viagem.”

Jaine Macena está de acordo com esse raciocínio. A mato-grossense brinca que não pode ver alguém de mais idade que já vai fazendo amizade.

“Eu só tive experiências positivas com pessoas mais velhas que encontrei em hostels. Geralmente, é uma galera de mentalidade aberta, com muitas experiências para serem compartilhadas”, comenta.

Foi justamente durante uma de suas viagens que Jaine conheceu Birgit Ulrich, de 57 anos, em outubro de 2020. A conexão foi tanta que a brasileira e a alemã fizeram 280 km do Caminho de Santiago juntas, convivendo durante 13 dias.

Jaine e Brigit ficaram hospedadas juntas nos albergues, mas não foi fácil/ Arquivo Pessoal

 

As duas passaram por várias cidades, sempre ficando em albergues, mas no Porto, em Portugal, se depararam com um “pequeno” empecilho: a equipe não queria permitir que Birgit se hospedasse ali, nem no quarto separado, que é onde ela costuma ficar mesmo, sob a justificativa de que se tratava de um hostel de vibe mais jovial.

Depois de um certo trabalho de convencimento, a estadia foi permitida só porque ela estava acompanhada de alguém que se encaixava no perfil desejado.

Intolerância ao barulho

As restrições controversas costumam se basear numa suposta intolerância ao barulho e ao entra e sai nos quartos da parte das pessoas com mais idade, ou pelo entendimento de que elas teriam maiores possibilidades econômicas e prezariam mais pela comodidade.

Ao ocuparem os espaços econômicos, tirariam o lugar que alguém que realmente precisaria estar ali. Nesse caso, a prioridade é dos estudantes.

Também existe uma alegação de que a presença de homens bem mais velhos afasta a clientela de moças, que se sentiriam mais confortáveis em ambientes com gente da mesma faixa etária.

Em fóruns de discussões de viajantes, aparecem diversos relatos de experiências desagradáveis com indivíduos que frequentemente são definidas como “creepy” (algo como sinistro ou assustador, em português), por adotarem comportamentos fora do comum naquele tipo de ambiente, como ficar andando de cueca num quarto repleto de meninas.

A especialista em envelhecimento e longevidade, e professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, em São Paulo, Gisela Castro se revolta com as limitações.

Hoje, mais e mais pessoas conseguem chegar e passar dos 100 anos. E por que então alguém resolve que com 45 anos você já não pode mais viajar? Olha quantas décadas de sua vida você vai ficar barrado! Gisela Castro, professora da ESPM

E rebate: “[Dizem que] velho é reclamão, mas eu conheço um monte de jovem reclamão, que pode ficar agressivo quando quer ser ouvido ou quer fazer respeitar seu pedido. Se você não quer que o hóspede reclame do barulho, você avisa que tem barulho, e pede para ele assinar um termo que concorda com isso”.

Cada um no seu direito

Existem certas leis antidiscriminação e para assegurar a igualdade, por exemplo o Equality Act 2010 do Reino Unido, que proíbe o tratamento desigual, a privação de oportunidades ou o acesso a serviços baseado em critérios como idade sem a devida justificativa.

Só que isso não impede que empreendimentos se posicionem abertamente afirmando que se você não se enquadrar na faixa etária estabelecida, “o hostel se reserva ao direito de cancelar a reserva a qualquer momento sem reembolso ou recusar a reserva no momento de sua chegada”.

Scott Swanson se viu numa situação dessas em 2019. Ele foi impedido de se hospedar no Hostel The Hague, em Haia, na Holanda, e não gostou nada da restrição.

Para evitar inconvenientes, o procedimento indicado é ler bem a descrição e todos os detalhes do local antes de pagar. Mas Scott defende que esses “pormenores” não estavam presentes no processo de reserva e a cláusula que proibia maiores de 40 anos só apareceu no próprio e-mail de confirmação.

Scott Swanson foi barrado, mas ainda adora um hostel/ Arquivo Pessoal

 

Na época com 44 anos, como ele não estava de acordo com as regras, preferiu não tentar a sorte, arriscando ser rejeitado ou mal recebido quando chegasse, e anulou a estadia.

Aí surgiu mais uma surpresa desagradável: como faltava pouco tempo para a viagem, ele seria cobrado pela primeira noite, além de uma taxa de cancelamento tardio.

A empresa entrou em contato com Scott no dia do check-in para entender a situação e disseram que ele poderia ter sido transferido para um estabelecimento da mesma rede que acomoda pessoas de mais idade.

“Isso também teria sido um problema, porque não seria o hostel que eu tinha escolhido. Se tivessem mencionado [essa informação] antes, eu poderia ter pesquisado aquele outro lugar e decidido se ficaria lá ou não”, rebate o nova-iorquino.

Tendo passado por muitos albergues pelo mundo, essa foi a primeira vez que ele se deparou com uma limitação desse tipo. “Eu pretendo ficar em hostels mais vezes no futuro e odiaria ser recusado em outros espaços por causa da minha idade”, completa.

Atualmente, na página inicial do site do Hostel The Hague, existe a seguinte descrição: “Por sermos um albergue da juventude, a idade máxima nos dormitórios é de 40 anos e não há limite de idade para os quartos privativos”.

Só os jovens gostam de socializar?

“Relaxe, faça novos amigos”, foto de Birgit Ulrich/ Arquivo Pessoal

 

“Quando você vai viajar, quer tudo menos se aborrecer, então, às vezes, é mais fácil procurar outro lugar do que brigar com aquele que não quer você”, diz Gisela Castro.

Porém, se aquele estabelecimento realmente o atrai, pelo preço, localização e comodidades, vale entrar em contato e explicar a situação, visto que frequentemente as restrições se aplicam somente aos espaços compartilhados.

Gisela indica que, caso haja um sistema naquela cidade ou país que respalde a vítima, ao se sentir discriminada e lesada, ela pode, num momento posterior, fazer valer seus direitos por meio de um processo judicial ou tornar pública sua indignação, evitando guardá-la para si.

Enquanto existe uma diferenciação entre jovens e não-jovens pela administração de vários hostels, Scott Swanson defende que isso não acontece entre os viajantes.

“Comecei a me hospedar em albergues com 19 anos, e mesmo naquele tempo, percebia a presença de alguns mochileiros mais velhos, por vezes na faixa dos 50 e 60 anos. Também notava que eles eram tratados da mesma forma que todos os hóspedes mais jovens, principalmente na faixa dos 20. Todo mundo ficava feliz por conversar com os mais velhos, incluíam eles nos jantares, nas saídas para os bares, baladas etc. Ninguém se importava com a idade deles. Com o passar dos anos e meu envelhecimento, nunca me senti estranho por continuar a me hospedar ali, porque [o acolhimento] continuou o mesmo”.

Do mesmo modo, Birgit Ulrich conta que sempre teve uma boa convivência e socializou com os jovens, inclusive se divertindo imensamente ao participar das festas.

Em contrapartida, Gisela explica que estar confortável nos ambientes variados não é unanimidade entre os idosos, “têm os que vão se sentir deslocados, não vão querer ficar ali e vão preferir lugares com gente parecida a eles”.

O mais importante seria dar a possibilidade de escolha aos hóspedes que, com a informação disponível na internet, conseguem identificar as características dos locais, como uma atmosfera de maior agitação dos “party hostels” ou a calmaria dos “boutique hostels”.

A partir daí, os viajantes poderiam reservar segundo as preferências de cada um.

“O turismo é o setor da hospitalidade. E não tem nada menos hospitaleiro que a intolerância. Todos ganham com um ambiente mais tolerante”, conclui Gisela.

*Texto publicado originalmente no Site da CNN Brasil.


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